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Precisamos repensar a falta de paciência que temos com a infância


O dia 4 de março deste ano foi, para mim, o início de um período bastante sombrio. O evento que o desencadeou - a condução coercitiva do ex-presidente Lula para depor na Polícia Federal - não foi o primeiro abuso na operação Lava Jato e muito menos se refere a uma pessoa que me seja particularmente simpática.


Não foi também o que me fez começar a reclamar privada e publicamente da falta de coerência, empatia, solidariedade e compaixão nas redes sociais, mas foi, no entanto, a fagulha para que o circo do impeachment pegasse fogo de vez e, com isso, uma série de eventos que estão nos levando a passos largos em direção a retrocessos impressionantes enquanto estado democrático e, principalmente enquanto sociedade.


Na verdade, eu tenho chorado muito desde que tudo começou. Fiquei sem dormir e tive muitos pesadelos. Olhei passagens para o Uruguai, engoli alguns sapos mas, em contrapartida, também "despejei" muita coisa na cara de muita gente. Me arrependi, me aliviei, me aborreci. Entrei em pânico em alguns momentos e fiquei profundamente desolada em outros.


Sim. Pois de lá para cá, um bispo da igreja universal desponta como principal nome para o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação; Temer recebeu a "benção" do Malafaia e do Feliciano; o deputado Flavinho disse que mulher gosta mesmo é de ser submissa; Eduardo Cunha caiu (de forma obscura, mas isso é objeto de outro post) - mas não sem antes ter tempo de fazer avançar suas pautas retrógradas e conservadoras, enquanto o STF enterrou de vez sua dignidade ao barganhar estrategicamente, no nível House of Cards, 40% de aumento para o judiciário (mas o que causou revolta mesmo foram os 9% para o Bolsa Família).


Também está tendo roubo da merenda escolar e porrada da PM para reintegração das escolas ocupadas por alunos em busca de uma educação um pouco mais digna. E o silêncio das panelas dos revoltados online está ensurdecedor a tudo isso.


E, no meio disso tudo, tem a minha gravidez e a experiência hormonal e emocionalmente extremamente intensa. Mesmo antes de confirmar a gravidez eu já acompanhava algumas discussões em grupos e páginas sobre a maternidade a parentalidade, mas foi nos últimos tempos, justamente no meio a esse turbilhão todo de emoções, que as discussões que até então apenas me incomodavam ou me faziam rir (parto normal vs. cesárea, leite materno vs. leite artificial, chupeta ou não, etc.) começaram a fazer um estranho sentido.


A polarização, a completa falta de empatia e compaixão pelo outro, mas também ausência de um olhar crítico ao sistema, às opressões e aos nossos próprios privilégios, os discursos rasos, vazios, desprovidos de um mínimo de argumentação escorrendo pelos dedos, computadores, tablets e smartphones são muito similares seja quando estamos falando de política, ou seja sobre o uso da chupeta. Falta de paciência é o que dá a tônica a todos os discursos relacionados à infância e ao cuidado.


E, então, tudo se encaixa para mim:


Falta paciência para esperar o parto e a hora do bebê. Falta paciência para compreender que a amamentação é um processo longo e muitas vezes doído. Falta muita paciência para compreender que bebês e crianças novinhas não dormem a noite inteira e que dar colo é acolher e não transformar seu filho no Darth Vader. Falta paciência para disciplinar as crianças de forma positiva, olhando no olho e acolhendo. Falta paciência com os professores, com as outras crianças, com os outros pais e mães.


Falta paciência para uma fila de vacina, para esperar a resposta do médico no WhatsApp. Falta paciência para esperar eles andarem, falarem, saírem da fralda, lerem, no seu tempo. Falta paciência para brincar e entrar no mundo da imaginação desses seres que construirão o futuro que tanto clamamos. Então dá-lhe chupeta, remédio, iPad, iPhone e qualquer outra distração que não me peça o que eu menos tenho: tempo e paciência.


Cada uma das questões que coloco acima referem-se a posts e comentários reais e frequentes nos grupos ligados às redes sociais em que participo:


"Ai, não aguento mais de ansiedade. Se não nascer até dia tal vou marcar logo a cesárea!".

"Gente, meu bebê tem dez dias e ainda não dorme a noite inteira. O que eu faço?"

"Meu pediatra me receitou um remédio que ajudou muito a bebê a dormir melhor!"

"Meu bebê só quer ficar no colo e faz meu peito de chupeta! Socorro!"

"Eu dei Danoninho e bolacha recheada e ninguém morreu"


Enquanto refletia sobre tudo isso, me deparei com a entrevista da psicanalista Marcia Neder à Folha de S.Paulo, no qual ela defende estarmos vivendo uma "infantolatria no Ocidente" na qual as crianças são tidas como reis e rainhas e os pais se dobram a todas as suas vontades, sendo essas as causas de todas as mazelas sociais que estamos enfrentando.


Ela argumenta que não há qualquer necessidade de se abaixar para conversar com uma criança e muito menos qualquer problema em gritar com nossos filhos e que tudo isso é exagero e apenas reforça a culpa das mulheres e que precisamos nos libertar dessas crianças ditadoras.

Esse argumento vai bastante em linha com o textão escrito em um outro grupo sobre a maravilhosa educação das crianças francesas que "não fazem birra, pois sabem o seu lugar".


Nesta preciosidade literária - aqui contém ironia - você também descobrirá que elas não são amamentadas (muito menos em público, já que as francesas são discretas - para quem se interessar tem também o livro: Mulheres francesas não fazem plástica) e não incomodam com essas bobagens de beijos, abraços e carinhos tão démodé.


Infantolatria? Cadê? Em que planeta?


Segundo a Unicef, a cada dia 129 casos de violência psicológica e física, incluindo a sexual, e negligência contra crianças e adolescentes são reportados ao Disque Denúncia 100. Isso quer dizer que, a cada hora, cinco casos de violência contra meninas e meninos são registrados no País. Esse quadro pode ser ainda mais grave se levarmos em consideração que muitos desses crimes nunca chegam a ser denunciados. Quer ver?


Um relatório de 2015 divulgado pela Secretaria Nacional de Direitos Humanos (SDH) mostra que a grande maioria das vítimas (55,73%) tem menos de 11 anos e que as meninas (47%) são mais agredidas do que os meninos (38%). A violência mais comum é a negligência (37%), seguida de violência psicológica (45%), física (21%), sexual (13%) e outras (4%). Em 37,18% dos casos, o agressor é a mãe e em 17,64%, o pai.


E todas essas violências são incrivelmente agravadas quando falamos de crianças negras e/ou meninas. Somos o País onde um adolescente perde a vida por hora e onde quase meio milhão de meninas com menos de 14 anos são obrigadas a se prostituirem ou ainda, a casar com homens adultos que poderiam ser seus pais e até avôs.


Em fevereiro de 2014, a história do menino Alex, 8, morto pelo pai depois de seguidas sessões de espancamento no Rio de Janeiro trouxe à tona a triste realidade de abusos contra menores e ela passa longe da infantolatria e ditadura de crianças sugerida pela Dra. Marcia.


De acordo com dados da SDH, cerca de 70% dos casos de violência contra crianças e adolescentes no Brasil acontece em residências, seja da vítima ou do agressor. E, assim como Alex, pais e mães são os principais acusados: 170 mil denúncias --cerca de 53% do total-- foram contra eles apenas em 2013.


Assim como na violência de gênero que naturaliza o famoso "em briga de marido e mulher não se mete a colher", a sociedade acredita que não deve se meter na forma como as pessoas educam seus filhos, e que a violência é uma punição aceitável.


Quando casos chocantes como do menino Alex ou da própria Isabela Nardoni aparecem, todo mundo se indigna, mas quase ninguém denuncia ao observar comportamentos violentos em famílias próximas, ao contrário, basta ler comentários a posts sobre as tais das palmadas para constatar que 90% das pessoas não apenas concorda como não tem o mínimo pudor em assumir utilizá-las e ainda acredita estar sendo muito mais civilizado do que "esse povo que fica dando colo e enchendo as Febems de criminosos" (pois de fato sabemos que a maioria dos internos de instituições para menores tem um histórico impressionante de amamentação em livre demanda, colo e carinho).


E eu, feminista, militante, futura mãe aqui chorando pela situação em que nosso País se encontra, volto a ponderar sobre as inúmeras semelhanças entre os abusos cometidos e naturalizados por homens com "suas mulheres" e aqueles que pais se sentem no direito de cometer com seus filhos cuja lógica me parece simplesmente a mesma: a desumanização do ser (criança ou mulher e multiplique por dois se houver ainda uma desumanização racial e de classe) e o retirar a subjetividade daquele sujeito.


A Dra. Maria que me desculpe, mas passamos longe de ser uma sociedade infantólatra. Somos sim uma sociedade em que crianças são diariamente espancadas, mortas, silenciadas, invisibilizadas e entupidas de remédio para se adequarem aos padrões exigidos. Somos, isso sim, uma sociedade sem paciência. Somos uma sociedade em que agredir e machucar os mais vulneráveis é banal. E reclamar de violência e opressão é "mimimi" e vitimização.


Somos, também, uma sociedade que acredita que a educação e a criação de uma criança sejam responsabilidade exclusivas da mulher. "Quem pariu Mateus que o embale", dizem. Tratamos a maternidade como se fosse um capricho da mulher, uma escolha pessoal. Somos, sim, uma sociedade que adora cobrar, mas detesta pagar. Somos a sociedade em que mulheres estão sobrecarregadas, exaustas e são constantemente culpabilizadas, agredidas e julgadas em praça pública.


Uma sociedade em que uma mãe que deixa os filhos com o pai é acusada de abandono. Somos, principalmente, uma sociedade em que o cuidado (seja de crianças, idosos, pessoas com enfermidades ou até animais) é completamente desvalorizado e desconsiderado como função social essencial ao desenvolvimento da nossa espécie. Cuidar, atividade delegada essencialmente às mulheres, é na nossa sociedade considerado dispensável, perda de tempo, perda de produtividade.


Como li ontem em um texto belíssimo da Leticia Penteado para a Revista Forum:


"Quantas mães se sentem apoiadas em sua maternidade? E quantas se sentem isoladas e desamparadas? Quantas sentem que a conciliação da maternidade com suas carreiras profissionais, acadêmicas, etc., foi facilitada pela sociedade como um todo e pelas pessoas ao seu redor? E quantas sentem que, tão logo pariram, suas presenças se tornaram indesejadas em qualquer ambiente que não sejam seus lares? A criança é muitas vezes tratada como um castigo (em alguns casos divino, inclusive), e frequentemente é vista como um estorvo para a mãe, uma coisa cuja existência inevitavelmente a impedirá de viver uma vida plena. Como se não houvesse nada que qualquer pessoa pudesse fazer a respeito - "que pena que ela engravidou... vai acabar largando a faculdade".


Não é de se estranhar então que se prefira que "se matem logo os bandidos", que passar por cima da Constituição e do Estado Democrático de Direito seja justificável para "tirar logo essa corja do poder." Também não deve nos surpreender que crianças façam desenhos da Dilma sendo enforcada ou a chamem livremente de vagabunda para delírio dos papais orgulhosos. Falta, mesmo, paciência.


O Começo da Vida


Mas, como sempre há uma luz no fim do túnel, ontem tive o prazer de assistir à estreia do filme O Começo da Vida. O documentário é fundamentado em estudos recentes que comprovam o quanto os primeiros anos na vida de uma pessoa são fundamentais para seu desenvolvimento. Seres humanos que são respeitados, educados com afeto e estimulados a fazer descobertas levam os resultados dessas experiências para sua vida adulta. Ou seja: tornam-se adultos melhores que não ficam reproduzindo ódio e notícias falsas no Facebook!


E, se por acaso você fizer parte daquela parcela da sociedade que "caga baldes para empatia", amor ao próximo e "essas baboseiras todas", o Prêmio Nobel da Economia concluiu que cada dólar empregado na primeira infância representa um aumento de 6 a 17 dólares nos salários no futuro - o que pode contribuir para um mundo mais igualitário.


Minha reflexão no meu primeiro Dia das Mães carregando essa coisinha de apenas 30 cm no meu ventre é, então, que eu possa ser cada vez mais protagonista da minha própria transformação e do ambiente que me circunda. Que eu possa criar um ser humano bondoso, generoso, comprometido com seus ideais e empático com o próximo! Que respeite a sua essência mas busque sempre aprimorar-se e desconstruir-se. Que sonhe, que caia mas levante. Que chore mas não perca a esperança. Que acima de tudo ame.


E este é o tamanho do desafio e da oportunidade que temos em mãos como pais e mães e como sociedade. Que meu filhote mais do que discursos, nos veja sendo generosos, amorosos, combativos e comprometidos. Que nos veja defendendo os que não tem quem os defenda e levantando a bandeira da igualdade e humanidade sempre. Que não me veja jamais silenciar diante de uma injustiça e que quando eu errar me veja pedir perdão. Que ele brinque, sonhe, imagine e que eu também faça tudo isso junto dele.


Nada disso significa que eu esteja defendendo a prisão feminina a estereótipos da "mãe perfeita" ou aprisionarmos a clichês de comerciais de dia das mães que só querem mesmo é vender. Significa apenas que, enquanto sociedade, precisamos repensar como tratamos nossa infância. "Quando você dá atenção ao começo da história, ela pode mudar por inteiro."

Obrigada, meu filho, meu amor, por me dar esse incentivo extra rumo ao meu trabalho de desconstrução para que, juntos, possamos construir um novo mundo.



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